Ir

Ter tudo e nada ao mesmo tempo. Estar mas não pertencer. Em tudo estou mas em nada me encontro.

Olho para o lado e não reconheço minha mãe, meu pai, meu namorado, meus amigos. Quem somos nós? Já fomos tanto e agora resta um incômodo vazio da presença física. Estamos todos em salas individualmente compartimentadas, juntos em momentos isolados mas dispersos na alma.

Assisto a um vídeo que me toca e chamo minha mãe ao meu quarto. Sabia que haveria má vontade mas que viria. Ela vem com a permanente, velada e compreensiva ânsia de que eu compartilhe um insight de vida, uma evolução profissional, o encontro do meu caminho. Naquele momento, entretanto, eu só tenho a oferecer um lugar ao meu lado para assistir a um vídeo do meu interesse. É pouco.

Em um acaso descuidadosamente articulado pela vida, em um dos minutos iniciais do vídeo há uma fala sobre pais que erroneamente buscam determinar o caminho profissional dos seus filhos. Eu nem lembrava daquela frase do astrólogo, que discorreu abundantemente sobre sua infância em Moçambique, seus anos em um orfanato em Portugal, outros em uma escola anglo-holandesa e que, assim, contava entusiasmadamente sobre seus trinta e quatro anos de peregrinação profissional na astrologia. Para mim, o vídeo era sobre astrologia. Para minha mãe, era sobre a tirania materna.

Olhei para ela e percebi que olhava para os lados, desconfortável, impaciente. Falei que poderia sair do quarto, se quisesse. Ela me disse que eu podia ser o que eu quisesse, em um começo de discurso sobre uma liberdade consentida pelo desespero. Na mesma hora eu me insurgi contra o assunto e encerrei o vídeo. Eu queria compartilhar um interesse, mas minha estagnação profissional é uma esponja que acaba por absorver qualquer interação genuína sobre outro assunto.

Ela sai do quarto e eu fecho a porta querendo fechar minha vida. Minha vida... Se eu pudesse eu teria feito as malas e ido embora naquele momento. Por tão pouco, alguns me questionariam. Por tanto, eu diria.

Naquele momento percebi que eu iria embora, sozinha, e por mais amor que exista dentro de mim, não haveria razão para voltar.

Aqui sou incômodo, sou atraso, sou o sonho irrealizado de pais compromissados com a segurança. Não julgo eles. Não me julgo. Mas claramente não pertenço.

Quando penso em ir me dói a ausência do tempo compartilhado. Todos nós vamos morrer, logo me lembro, então a angústia de perder o tempo que ainda temos me toma. Mas como perder algo que não existe? Tempo? Que tempo temos separados por paredes de concreto que isolam cômodos, televisões e mundos tão diferentes? Nossas almas estão unidas por um endereço e separadas pelo silêncio.

Posso ir e não retornar livremente, pois sei que não teria ao que retornar. Não agora. Não assim. Habito um quarto que não deveria ser meu. Há um cronômetro psicológico que tiquetaqueia minha partida. Enquanto permaneço fracasso.

Essa distância emocional paternal é um lugar comum para mim, mas estranha em relação à minha mãe. Não nos reconheço e por isso não sei mais quem eu sou. Como posso querer romper meu vínculo mais forte com a vida para me tornar eu mesma? É um paradoxo incontrolável que pulsa os meus dias, que motiva a prescrição antidepressiva e que me faz percorrer os mais diversos caminhos para achar, de uma só vez, todas as respostas. Para que eu possa ser eu, minha mãe minha mãe, meu pai meu pai, todos nós habitando espaços fisicamente separados para que possamos finalmente nos encontrar.

Há um outro fator é curioso na ideia de ir embora. Penso em ir embora como se nada deixasse para trás, embora eu tenha formalmente um namorado. Aqui, nesta cidade, neste bairro, a poucos quarteirões. Poucas quadras, mas quilômetros de distância. Também estamos mas não somos.

Normalmente pensaria que ir embora seria motivo de grande dor para os que ficam. Neste momento, entretanto, não é o que me afigura. Não sinto que estaria deixando nada para trás porque não me sinto parte de ninguém. Olho para ele, sei tudo o que já vivemos, tudo o que hoje vivemos, mas sinto que não tenho o que abandonar. Ir embora... de onde? Não estou em lugar algum.

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